quarta-feira, 16 de maio de 2007

Repeteco / Memória 1977
TESES SOBRE O MODO DE PRODUÇÃO DO POEMA/PROCESSO

Moacy Cirne

1. O poema/processo não é poesia.
Desde sua origem (1967), sabe-se que o estágio poético, característico da poesia tipográfica (poesia concreta, inclusive), não lhe é próprio como referência intersemiótica. A poesia, em sendo subjetiva, com toda a sua carga de emocionalidade (este filme é poético, aquele crepúsculo contém poesia etc.), não interessa ao projeto significante do poema/processo. Conter ou não poesia, em maior ou menor escala, é secundário para o discurso literário que se quer mais produtivo, mais conseqüente, mais trabalhado. A prática semiológica do poema/processo não leva em conta, portanto, a possibilidade (abstrata) da poesia: o poema/processo é o produto físico elaborado pelo poeta-artista.

2. O poema/processo não é para-literatura.
Os possíveis elementos semântico-literários deste ou daquele projeto particular do poema/processo não são suficientes para defini-lo como para-literatura. O próprio conceito de para-literatura (que marcaria a ficção científica, a novela policial, a literatura fantástica, as estórias em quadrinhos) é duvidoso. A rigor, não se trata de um conceito, no sentido teórico. Já o poema/processo, seja como projeto gráfico, seja como versão material, existe em um espaço significante alheio à literatura, à poesia e à para-literatura, admitindo-se a concretude textual da última. Seus produtos seriam, antes, (anti)literários, por extrapolarem, criticamente, os elementos literários contidos numa primeira instância.

3. O poema/processo exclui a informação estética.
O centro crítico e produtivo do poema/processo, em sendo semiológico, rejeita toda e qualquer estética, toda e qualquer poética. O poema/processo, pois, assumindo uma atitude política ao nível da linguagem, não poderia ser formalista. O projeto, desencadeador de novos poemas, suprime o formalismo que caracterizava as vanguardas anteriores. O que interessa é a informação: a linguagem a serviço da prática revolucionária.

4. O poema/processo redimensiona a informação semântica.
No espaço significante de sua prática, não mais a informação semântica como simples matriz de conteudismos ou realismos acadêmicos. No poema/processo a informação semântica existe a partir da leitura produzida pelo projeto: a versão, seja formal ou não, é um ato político semantizado pela leitura.

5. O poema/processo é experimental.
Ao trabalhar os signos concretos (gráficos, visuais, sonoros, ambientais etc.) da linguagem, o poema/processo o faz explorando as potencialidades físicas do material escolhido, assim como a grafia de suas possibilidades semióticas. Estas possibilidades são testadas experimentalmente, nos mais diversos níveis da produção. O poema/processo nasce de uma pesquisa aberta e múltipla em relação à linguagem: pesquisa que, através do projeto e da matriz, leva a novos poemas, a novas linguagens, a novos projetos. O poema/processo (que se relaciona dialeticamente com o poemário experimental brasileiro produzido a partir de 1973/74) nunca pretendeu ser uma vanguarda única e absoluta: pretendeu apenas atingir a informação nova (sem cair, bem entendido, nos vícios idealistas daqueles que sacralizam a teoria da informação) mediante os vários caminhos que passam pelo experimental.

6. O poema/processo critica a ideologia.
Embora situado ao nível da superestrutura, próximo às camadas ideológicas, o poema/processo, justamente por se inscrever nos quadros de uma produção semiológica, ativando leituras produtivas, é capaz de criticar (como pura metalinguagem) a ideologia. Em primeiro lugar, a ideologia literária imposta pelas classes dominantes; em segundo lugar, a ideologia das próprias classes dominantes. Não se quer dizer com isto que o poema/processo, fundador de atividades semiológicas, é científico. O poema/processo, apenas, tem consciência de seus limites e de suas funções artísticas no interior da sociedade.

7. O poema/processo é uma intervenção semiológica.
Como linguagem e metalinguagem, o poema/processo intervém crítica e produtivamente nos agentes formais e estruturais dos discursos artísticos e literários, enquanto reflexos dinâmicos da sociedade que os gerou. Por ser uma linguagem carregada de signos experimentais, que revelam o lugar social e (anti)literário de sua prática significante, o poema/processo é uma intervenção cultural nos discursos semiológicos e nas práticas textuais da arte, da literatura e da própria semiologia.

8. O poema/processo inscreve-se como produção cultural.
Hoje, o poema/processo, em sendo uma intervenção semiológica, realiza-se política e socialmente como produção cultural. Sua intervenção deve atingir, na teoria e na prática, os componentes mais danosos e conservadores da arte e da literatura. O poema/processo, queiramos ou não, é um problema literário. O poema/processo, queiramos ou não, é uma posição radical dentro da vanguarda brasileira.

9. O poema/processo dinamiza a relação produção/leitura.
A prática do poema/processo, em dez anos, mostrou o papel assumido pela leitura, seja a crítica, seja a produtiva. O poema/processo não se dirige a consumidores: dirige-se (para formar) a leitores, a partir do projeto ou da matriz. A relação obra/consumo transforma-se qualitativamente na relação produção/leitura. O primeiro termo (produção) existe, na prática, como produção semiológica e cultural; o segundo termo (leitura) existe como intervenção cultural e semiológica. A relação é dinamizada através de uma prática experimental, remetendo a novos poemas (opções criativas). Os novos poemas atestam a funcionalidade do(s) projeto(s) dado(s). O poema/processo não se restringe a este ou àquele vanguardismo particular. A própria idéia de uma vanguarda mais formal é questionada pela prática significante do poema/processo, prática esta que leva à produção e à leitura. Ao poema/processo só interessa a prática revolucionária, capaz de produzir uma leitura igualmente revolucionária: o poeta/processo, produtor de signos, é um operário da leitura, assim como (já nos dizia Álvaro de Sá) é um operário da linguagem.

[As presentes Teses foram publicadas originalmente em 11/12/1977, no suplemento Contexto do jornal A República, em Natal; republicadas em nosso livro A poesia e o poema do Rio Grande do Norte, edição de 1979, em Natal, pela Fundação José Augusto.]

2 comentários:

o refúgio disse...

Ei, gostei do novo visual!
Texto muito elucidativo, Moacy. Mas preciso relê-lo com mais tempo.

Um beijo.

Anônimo disse...

Era exatamente o que eu estava procurando.